DRAG KINGS: BRINCANDO COM OS GÊNEROS
O Drag King, de uma certa forma, não expõe simplesmente os desejos ditos “anormais” ou “gêneros anormais”, ele brinca com o que já é perverso no normal.
Este texto é produto de minha pesquisa de pós-doutorado, realizada na New York University (NYU) de setembro de 2001 a julho de 2002. O alvo dessa pesquisa foi a comunidade transgender, termo guarda-chuva usado para designar as pessoas que desafiam os papéis rígidos desempenhados pelos gêneros. Dentre a diversidade que compõe essa comunidade, gostaria de privilegiar aqui a atuação dos Drag Kings, para esta mesa sobre “Representações de Gênero: significados singulares e plurais”.
Escrito por Judith Halberstam e com fotos de Del LaGrace Volcano, The Drag King Book aponta no primeiro capítulo a dificuldade de conceituar o termo. Entre as inúmeras tentativas, gostaria de citar a seguinte: “um performer que transforma a masculinidade em seu show”. Este performer pode ser uma mulher heterossexual que assume uma persona masculina apenas para fazer o show, ou uma butch que encontra uma forma de expressar sua masculinidade. Cumpre ressaltar que o Drag King, assim como a Drag Queen, pode fazer uso apenas do palco para existir como também, ao inverso, fazer uso do drag para existir.
No dia 27 de fevereiro de 2002, participei do evento “Performing Gender: A conversation with Judith Halberstam and Drag King Dréd Gerestandt”, organizado pelo Barnard Center for Research on Women. A professora de Literatura da Universidade da Califórnia assinalou em sua palestra que as transformações de gênero na história coincidem com o surgimento de male impersonators, e citou, como exemplo, a época vitoriana e os anos 20. Do ponto de vista de Halberstam, os estudos queer se desenvolveram em estudos culturais. Levando em consideração seu campo de pesquisa, ela considera o Drag King um bom exemplo de participante sub-cultural. Cabe ao teórico, ao seu ver, coletar material, produzir interpretação além do mainstream, e trabalhar como historiador para registrar a atuação do participante da sub-cultura.
Judith Halberstam mencionou que o tema de sua palestra era “Perigos e prazeres da colaboração”, devido ao seu interesse na relação entre a academia e a sub-cultura. Naquele momento, ela estava colaborando em um filme sobre Drag Kings que, no seu ponto de vista, não poderia ser classificado de documentário, uma vez que o cenário era falso. Halberstam localiza os Drag Kings nos anos 90 e os associa às pessoas brancas e à comunidade lésbica. A professora de literatura enfatizou que não relaciona os Drag Kings aos FTM (Female-to-male transsexuals), mesmo porque os próprios transexuais avaliam os Drag Kings como uma humilhação para a sua comunidade por tratarem, de forma lúdica, a questão do gênero. De acordo com Halberstam, os Drag Kings capturam tanto a potencialidade como a probabilidade da juventude. Observando atentamente as fotos tiradas por Del LaGrace Volcano no livro acima mencionado, pude constatar que os Drag Kings são interpretados por mulheres jovens.
Entretanto, este evento estaria incompleto sem a presença de um Drag King para dialogar com a professora da Universidade da Califórnia. Considerada como uma das performers mais inspiradas de Nova Iorque, Dréd Gerestant é cantora, atriz, modelo e “ilusionista de gênero”. A famosa impersonator afro-americana abriu sua fala com a afirmação: “É natural ser diferente”, seguida de um discurso em que defendeu a liberdade de gênero assim como questionou os conceitos de masculinidade e feminilidade.
O que chamou a minha atenção na performance de Dréd foi sua capacidade de materializar esse questionamento, ao desempenhar tanto papéis masculinos como femininos. Utilizando-se de perucas, roupas e acessórios apropriados, ela se transforma em frente à platéia – o que também contribui, a meu ver, para esse questionamento. Mas isso não é tudo. Dréd admitiu em público que algumas pessoas pensam que ela é MTF (Male-to-female transsexual). De fato, ela tem uma aparência andrógina, com seu corpo negro esbelto e rosto assexuado. Por conseguinte, ela é extremamente convincente quando representa tanto como homem quanto como mulher - ela tem physique du rôle. Desempenhando o papel de mulher, ela coloca uma peruca vermelha, usando apenas um soutien vermelho de couro e short preto. Vestida desta forma, ela tira uma maçã de seu short e morde a fruta. “Toda vez que eu mordo a maçã estou reivindicando meu lado feminino”, ela afirmou orgulhosamente. Gostaria, no entanto, de ressaltar uma diferença. Quando ela representa ao som da música “A Natural Woman (You Make me Feel Like)”, interpretada por Aretha Franklin, ela atribui um significado diferente à essa música, já que “a mulher natural” é construída, passo a passo, na frente do público. Conseqüentemente, ela desconstrói, de forma lúdica, o conceito de “mulher natural”. No que diz respeito ao seu lado masculino, Dréd declarou em uma entrevista para o Drag King Book: “Quando estou em drag parece natural, porque eu tenho muita energia masculina”. Não surpreende, portanto, ela representar tão bem personagens como Marvin Gaye e Shaft. Ao observar seu show, tornou-se claro para mim que ela constrói e desconstrói ambos os gêneros com muita facilidade e habilidade. Sob meu ponto de vista, Dréd Gerestandt consegue corporificar o conceito de “fluidez dos gêneros”.
No dia 21 de junho, tive a oportunidade de assistir ao Sir Real’s “Reality Show” no WOW Café Theater localizado no East Village. Os Drag Kings deste espaço já consagrado se reúnem com o objetivo de eleger o tema do mês e desenvolver seus shows em torno do tema escolhido. O tema do mês de junho foi “High School Romance”. A melhor performance do show, na minha opinião, foi a de Brandon Iron. Este Drag King, personificado por uma aluna da NYU, vestia um chapéu de palha, botas e jeans. Ele tinha uma barba feita com maquiagem e uma mancha de batom em seu rosto. Sem sombra de dúvida, um dos mitos norte-americanos mais machistas é o do cowboy do oeste. Ao som de uma canção do oeste, Brandon Iron fazia trocadilhos sexuais com as expressões “save a penny” e “ride a cowboy”. Considero esta performance uma forma de desconstruir este mito, uma vez que Brandon Iron claramente “diz” para a público que masculinidade não é um privilégio dos homens. A propósito, este é o ponto principal de outro livro da já citada Judith Halberstam. Em Female Masculinity, a autora argumenta que a masculinidade existe sem os homens, ao convidar o leitor a separar o conceito de masculinidade do corpo masculino. É surpreendente observar a multiplicidade de expressões de gênero que variam de identidades pré-lésbicas às performances de Drag Kings, incluindo a discussão sobre lésbicas stone-butch e male-to-female transgenders.Gostaria também de acentuar no Reality Show a performance do apresentador. Sir Real deu início ao show vestido como uma femme, usando saia e blusa e uma peruca loura. Ao olhar para este Drag King, eu tive um impacto, pois somente então pude entender o que já havia lido em alguns livros. Quando uma mulher masculina se veste como femme, ao invés de parecer feminina, ela parece um homem gay em drag. Pois sua forte expressão de gênero prevalece, já que não pode ser suprimida por uma saia, cabelo longo e uso de batom. Por conseguinte, eu cheguei à conclusão de que não faz sentido nenhum o que a sociedade de consumo vem pregando. Nós, mulheres heterossexuais, não precisamos comprar roupas caras, maquiagem e acessórios com o objetivo de nos tornarmos femininas para, então, sermos o objeto do desejo masculino. Aprendi que a feminilidade não está localizada no exterior; ela é, ou não, a expressão de gênero de uma mulher. A feminilidade não pode ser adquirida através do uso de roupas ou de adereços ditos “femininos”. Ao longo do Reality Show, enquanto apresentava os Drag Kings e outros artistas performáticos, Sir Real ia tirando gradualmente seus itens femininos até ficar reduzido à roupa intima. Naquele momento, retirou o soutien e pediu a uma pessoa da platéia para ajudá-lo a enrolar seu busto em papel celofane e começou, também gradualmente entre as apresentações, a se vestir como um Drag King, com calça jeans, camisa e sapatos masculinos. A platéia pôde claramente visualizar o que é um Drag King e como ele se veste para a apresentação. Creio que ver este show me ensinou mais sobre Drag Kings do que provavelmente ler sobre eles.
Em “Curtain Call”, o último capítulo de The Drag King Book, Judith Halberstam estabelece as diferenças entre as performances de Drag Kings, ao discutir a contribuição dos impersonators para este aspecto da sub-cultura:
Como tentei demonstrar neste livro, não existem relações essenciais entre ser uma pessoa masculina e representar como um Drag King, mas existe alguma relação entre representar a masculinidade e diminuir os elos naturais entre masculinidade e homens. Quando femmes ou mulheres heterossexuais femininas representam como Drag Kings, elas experimentam o privilégio masculino negado no dia a dia, e produzem uma mistura camp de feminilidade e masculinidade. Quando butches representam como Drag Kings, elas criam uma nova masculinidade, em torno de suas masculinidades cuidadosamente cultivadas e tendem a criar efeitos de realidade e efeito masculino convincente…
(…)
Finalizo meu texto tecendo o seguinte comentário sobre a epígrafe. Não existem desejos “anormais” ou gêneros “anormais”. A perversidade existente reside no conceito de normalidade que restringe o gênero a apenas duas categorias.
DRAG KINGS: BRINCANDO COM OS GÊNEROS - BERUTTI, Eliane Borges - UERJ
Notas:
¹ HALBERSTAM, Judith e VOLCANO, Del LaGrace. The Drag King Book. London: Serpent’s Tail, 1999. p. 152 Minha tradução assim como todas as demais.² Ibid, p. 36³ Ibid, p.1204 HALBERSTAM, Judith. Female Masculinity. Durham: Duke University Press, 1998.5 HALBERSTAM e VOLCANO, Op. cit., p.150Fonte original:
http://www.rj.anpuh.org/Anais/2002/Comunicacoes/Berutti%20Eliane%20B.docObs.: os destaques em negrito foram adicionados durante a edição do texto para a publicação neste site.
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